"Um fio invisível conecta aqueles que estão destinados a encontrar-se, independentemente do tempo, lugar ou circunstância. O fio pode esticar-se ou emaranhar-se, mas nunca romperá."
O comentário de Dyveke, na rede social Filmow, uma espécie de “Facebook para filmes”, vem com aspas, como se requeresse alguma origem... mais para cima, o comentário de Vanessa Dantas emerge, citando aquele anterior, para que pudesse sempre voltar a tal ideia. É assim, talvez, com carinho, que gostaria sempre de me recordar deste filme; embora as lembranças sejam sempre falhas, impiedosas e vingativas.
“A Dupla Vida de Véronique”, filme que marca a transição de Kieslówski – em um momento que muros como o de Berlim vinham à tona (pois não seria na sua queda, com estrondo, que se tornam mais perceptíveis?) – transição da sua fase polonesa para a francesa; é um filme cheio de detalhes. Caixas de cigarros vazios com cadarços, um pedaço da roupa que prende na porta do táxi quando se sobe nele apressadamente; ou mesmo um dedo enfaixado pelo mesmo motivo da pressa. Dedos também enrolados em espirais de cadernos, e uma senhora que atravessa a rua com a sua sacola cheia de compras, preocupada demais para “ser ajudada”.
Para além dos detalhes, alguns “pormaiores” abrem suas asas por cima do céu do filme. Céu esse que parece ditar o destino de suas protagonistas: inclusive a primeira delas, Weronika. O filme oscila entre duas lendas/mitos: a/o alemã/o de Doppelgänger, a hipótese de que todos nós possuiríamos algum duplo em alguma face da Terra; e a de Akai Ito, o fio vermelho invisível do Destino. O próprio Kieslówski reitera em uma das suas entrevistas essa última ideia, recordando-nos o comentário supracitado: “Há uma ligação entre as pessoas, há fios invisíveis”.
O filme age, assim, como esse fio que escorre pelo chão feito uma echarpe vermelha; o mesmo fio que enxergamos nos exames de eletrocardiograma, que oscila e oscila muito entre essas duas possibilidades: a do acaso e a do destino. E a primeira soa tão colada à segunda que também parece carregada de misticismo.
Não à toa é que já se falou – bem lembra o filósofo esloveno Slavoj Zizek – de uma certa “teologia materialista” presente nos filmes de Kieslówski: abre-se a possibilidade da presença do titereiro, e quando percebemos que ele somos nós, não sabemos mais o que fazer com os fios: esse é o tal silêncio becktiano, o do absurdo, de que me falaram alguma vez?
Ou da ansiedade. Da angústia. O filme, não nos engane, embora com um roteiro aparentemente simples, soa suas impossibilidades para muito além: de nossas escolhas. O próprio Kieslówski, não muito tempo depois, se depararia com o mesmo destino de “uma” de suas protagonistas. E, assim, “A Dupla Vida de Véronique” parece nos questionar constantemente a lição da psicologia: o que fazer com nossos desejos?
No meio disso tudo, parece surgir uma terceira não-verdade em alhures no filme: e, daí, por sua vez, a ligação entre a angústia do Doppelgänger, a possibilidade, também mística, do destino e o princípio do “livre arbítrio”: se alguém, nosso duplo, nos mostra os perigos, mesmo que também de maneira intuitiva, onde haveria possibilidade de escolha senão no ato que, ao final, de alguma forma, é sempre também um ato suicida (sei que é “errado”, mas mesmo assim o faço)?
Como na metáfora do rio, de Heráclito, persiste, então, a angústia eterna do não-mais-eu?
Tento me recordar também agora de como cheguei a esse filme, que fio me conectou a esse fio. Foi um dos primeiros filmes que assisti completamente em inglês, ainda inseguro das traduções. Das traições da língua. Do “L’enfer”, música que segue tocando durante todo o filme e reitera essa mesma traição: a dos próprios desejos. Por sua vez, a música que ma apresentou dizia: “A linguagem pura é binária.” Ainda não sei o que isso significa.
Essas foram, afinal, as incertezas que percorreram a vida de Kieslówski até o seu fim**...
“Eu não gosto de mim especialmente, então, tento não me observar com muita frequência. Uma vez fiz um documentário chamado Entrevistas (Gadające Głowy, 1980). Fiz duas perguntas aos entrevistados: ‘Quem é você?’ e ‘O que você deseja?’ Depois, fiz a mim mesmo essas perguntas e percebi, de imediato, que eu mesmo não tenho respostas. Eu não sei quem sou e não sei o que quero. No máximo, quero paz e calma, mas eu nunca consegui e talvez nunca consiga (…)”*
Mas é assim que as “Verônickas” do filme agem. E Kieslówski já foi criticado por essa posição. Por esse olhar. Esse olhar dentro de outros olhares, assim como Weronika parece visualizar o mundo através de uma espécie de “bolinha de gude”, com toda a distorção de seus espelhos que, nem por isso, pode ser reduzido a um falseamento da realidade. A realidade, distorcida ou não, embora com seus duplos, verte-se em uma só. Ao contrário da visão unilateral que sugere a onomástica frente às protagonistas: “Verdade”, e “Verdade Única”, sugere a etimologia. Que nem um amigo já me disse uma vez: não estaremos mais diante dela, nem delas, mas “estaremos diante do estar diante” (BRITO, 2016, p. 9).
Depois dessas divagações, resta-me a pergunta: porque escolhemos esse filme para a sessão do mês das mulheres no Cineclube Zumbis?
Talvez se saiba.
(Texto por Nyll N. M. Louie)
(*) Conversa com Kieślowski. AYRE, Elizabeth; KOREFELD, Ruben. Films d’Ici/Sidéral/FR3, 1991. Nos extras do DVD A Vida Dupla de Véronique.
**As duas citações que são falas de Kieslowski pertencem ao artigo “Kieslowski e o outro mundo”, da Revista Universitária do Audiovisual.
Direção: Krzysztof Kieslowski
Ano de Produção: 1991
País: França
Título Original / Internacional: La double vie de Véronique
Duração: 1h 38min
A exibição iniciará às 19h, no auditório do CEI!
Evento no faceboook: https://www.facebook.com/events/342965516107311/
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